sábado, 4 de julho de 2015

CONBERSU TABERNA II: Cabral, canja, verduras e dignidade



Por Dotor Borchi

Dja-m bira fino. Gosto dela. Gosto de tê-la à frente. Adoro comê-la. Tanto quanto me apetecer. Mas estar publicamente ao lado dela... não sabe bem. É indigno! É sinal de falta de fineza. O nome dela, quer dizer, são mais do que uma, os nomes delas são canja e verduras.

Sta na moda. Foi assim. Quando a Janira Hopffer Almada – é preciso dizer, com aparente insuficiência lírica no script do seu discurso - disse que os cabo-verdianos deviam perguntar-se o que podiam fazer para sair do desemprego. Entre outras coisas, deviam perguntar-se “se tem pastel ki n’podi fazi, se tem canja ki n’podi bendi”. Logo a seguir, um conjunto de activistas sem pasta desatou-se em indignação. Que esse tipo de trabalho é indigno, etc. Aliás, a indignação alastrou-se por uns largos dias na rede (social). E eu, que sempre ouvi a sua avó a dizer que “hora ki tem pouco, trabadju ka ta scodjedu” senti logo uma enorme vontade de partilhar no Facebook foto da sua avó acompanhada de frases de indignação. Pois, muita boa gente adora comer canja. Tanto quanto lhe apetecer. Desde que haja alguma. Contudo, outra coisa é vender canja. É indigno. Bem, dizer que vender canja é indigno não deixa de ser um grande insulto às vendedeiras. E ainda, confundir “indignidade” com “pouco gratificante” poderá ser um auto-insulto. Pelos vistos, em Cabo Verde, toda gente quer tornar-se fino e estar na moda. Quando não se está moda, igual aos outros, aumenta-se os próprios salários.

E à dra. Janira, uma vez que dirigir um País é, em primeiro lugar, gerir sonhos, convêm inovar-se no discurso. Contudo, sem excesso e extrapolação. É quase certo que o meu tio, Djon de Féfé, agradecia se não usasse, ou pelo menos usasse pouco, a seguinte lista de palavras: “porton di nôs ilha”, “gota d’agua”, “transformação”, “plataforma”, “e-governance”, “horizonte 2030”,“empreendedor”, “cluster 'preencher com alguma coisa'”, “era de microprocessador”, este último inventado pelo dr.  Jose Maria Neves, etc. Dizia, o meu tio agradecia porque ele não percebe os meanings destes termos, e eu muito pouco.

Bem pa moda. Também foi assim. A Câmara Municipal da Praia iniciou a instalação – provisória - do mercado municipal nas proximidades da estátua de Amílcar Cabral. Espaço esse, que serviria provisoriamente de lugar para as vendedeiras comercializarem as suas verduras, entre outros produtos. Muitos activistas, uns com pasta e outros sem pasta, desataram-se logo em indignação. Entre os indignados estavam: a dra. Iva Cabral (pelos vistos, filha de Amílcar Cabral e reitora de uma universidade em S. Vicente), o dr. José Maria Neves (que pelo nome, tudo indica que é o primeiro-ministro de Cabo Verde), o dr. Manuel Brito Semedo (supostamente um professor universitário) e o dr. Manuel Veiga ( eventualmente um professor universitário). Uma coisa é discutir a pertinência da data ou o efeito em termos do simbolismo e, talvez, arquitectónico que uma construção – qualquer que seja ela – possa ter em relação à estátua. Outra coisa, bem diferente, é dizer que ter vendedeiras de verduras nas proximidades da estátua de Amílcar Cabral é indigno. Isto sim, é um insulto, se quiser, à memória de Amílcar Cabral. Mais, um insulto à dignidade das vendedeiras. Trata-se, uma vez mais, de um acto de fineza. Se não estou errado, foi esse mesmo Cabral que tantas vezes falou de “reconquistar a nossa personalidade e dignidade de homens e de africanos”. Mas pronto, “bem pa moda”.

Dentu moda. Convêm que em vez de se armar em fino e seguir a moda, “pensemos pelas nossas próprias cabeças”. E construir uma sociedade partindo de “coisas simples e básicas”, dizia Sampaio da Nóvoa. E já agora, o meu tio agradecia. E no rol dessas coisas básicas e simples incluir-se-ia: fazer agricultura, estudar, pescar, vender canja (pastel, verduras, etc.), ser costureira, ser condutor de Hiace, etc.
Créditos: @Dotor Borchi; Musica:Zé de Nhina sem bó” de Ze Spanhol 

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